Eles dividiam um espaçoso apartamento há dois anos. Muito precocemente, chegaram à conclusão de que não viveriam um longe do outro. Chegou a achar impossível um interesse por qualquer outro representante do sexo oposto, 'um exagero', pensou durante a última semana. A idéia de possuir um endereço em comum ainda a acomodava, ainda dava uma sensação de segurança. Ou mesmo um compartilhamento de cama e cobertores, ombros e braços, pernas e meias. Odiava se anular perante a presença dele, mas sabia que não poderia deixar de se render.
Haviam se conhecido quando ele, num ato alheio à sua personalidade, resolveu frequentar uma aula de dança flamenca. Ela, a professora, o encantou profundamente. Ele não se conteve ao olhar aquelas pernas, os joelhos e os calcanhares. O cabelo negro e espesso fazia um movimento contínuo, uma dançar que o embalava. Não pôde evitar o desejo. Ela o ignorava, sustentando a posição de meta a ser conquistada, como uma mulher faz quando sabe que é desejada. Ele perdeu o chão e os braços e ela ria dele. Fizeram amor naquela mesma noite. Mudaram-se para o apartamento comprado com anos de economias um mês depois de terem se conhecido. Nada era precipitado naquele ano, de paixões ardentes e música.
Os dois anos passados foram intensos, repletos de novidades exageradas. Ele descobria o corpo dela, ela aprendia sobre o mundo. Não entendia como um homem como ele, casmurro, um intelectual e literato, pudesse interessar-se por uma professora de dança flamenca. 'Os opostos se atraem', ele comentava enquanto beijava a nuca dela, branca como os lençóis, e passava a mão morena por suas costas. Hoje, ela julga uma fantasia.
A idéia do endereço em comum passou a incomodá-la quando ele recebeu uma carta. O cheiro e a letra de mulher a intrigaram. Ela sabia que não podia lê-la. Foi dessa impossibilidade que teorias fantasiosas surgiam à sua mente. 'Abro para evitar uma possível morte por coração'. Com o vapor que saia da água que brobulhava, o envelope se abriu. Convites aceitos e conversas fascinantes mostravam o texto como uma resposta. 'Típico dele, as longas conversas. Uma amiga'. Enquanto passava os olhos pelas letras, percebia um carinho que nascia de cada palavra e de cada sentido por trás delas. Sabia que era o tipo de mulher que o atraía. Pousou o envelope sobre a bancada da cozinha e sentou-se. Com a cabeça apoiada na mão direita e a esquerda passeando pelos cabelos, ela pensava em amantes. 'Talvez ele queira mesmo ter duas mulher. Uma que o satisfaça fisicamente; outra, intelectualmente. Tão justificável'. Mas pensava e não era o bastante para evitar o peso no peito. 'Por que ele não fica com uma? Tenho a certeza que ele consegue enxergar beleza em qualquer mulher'. Não evitou a raiva e nem quis fazê-lo. Sentia-se no direito de interrogar. Até mesmo de parecer ciumenta, posição que nunca ocupou devidamente. Queria fasciná-lo. Queria justificar algo cheio de impossibilidades. 'Homens...'. Algo como vingança? Não queria sentir tal absurdo. Ele estava com ela.
[metade de texto encontrado em um dos meus cadernos. continuar.]
terça-feira, julho 14, 2009
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