O corte da lâmina de barbear não havia sido pequeno. Parou para olhar o sangue, que agora caminhava com a água e manchava os azulejos brancos do banheiro. O tédio fizera parte do seu dia, e observar aquele líquido vermelho compunha um verdadeiro acontecimento. Pensou que nunca mais rasparia as pernas novamente, resolvendo optar pela dor da cera de depilação.
Saiu do banho e enxugou-se, lentamente, ainda com a atenção voltada para os sangue que agora secava em seus pés. Abriu o armariozinho do banheiro e pegou band-aids. Caminhou para fora do banheiro e sentou-se, nua, na cama. Encostou a cabeça em um joelho e fez, lentamente, os curativos nas pernas. 'Estabanada'. Viu que a janela estava aberta, e que o velho do prédio ao lado a observava, satisfeito. Levantou-se, injuriada, mostrou a língua e fechou as cortinas.
A preguiça para trocar de roupa era maior, o que fez com que ela colocasse apenas uma calcinha e desistisse de algo mais, afinal, o ar parava com tanto calor. Deitou-se na cama e fitou o teto branco. Claro que a demora de alguma palavra dele já havia se tornado insuportável. Não quis acreditar que chorava e enxugou as lágrimas violentamente. 'Ele não me merece'. Passara a semana toda repetindo por quês e não havia tido resposta alguma. As duas mais constantes perguntas repetiam as palavras valor e desgaste. Achava que o pior de tudo era continuar acreditando que era linda, inteligente e fantástica. Isso não bastava?
Virou-se e quis suforcar-se no travesseiro, sentindo apenas o gosto salgado das lágrimas que ainda teimavam em cair.
Algum impulso de raiva, dor e cansaço e o grito de 'chega' a fez levantar-se e colocar um vestido preto, aquele com a fenda. Cobriu os olhos com lápis escuro, a boca com algum batom forte e soltou os cabelos. Sairia sozinha. Cansara-se de esperar por ele, cansara-se de dor, cansara-se de descaso e negligência.
Abriu a porta do apartamento com força e decidiu descer os cinco andares de escada.
Enquanto descia lentamente os degraus e balançava os cabelos com desantenção, tropeçou em alguma coisa. Alguma coisa, não. Em alguém. Um rapaz que lia alguns papéis repletos de escritos à mão.
- Nossa, ai, desculpa, eu não te vi aí - dizia, rapidamente, enquanto mexia os braços em movimentos repetidos.
- Não, imagine. Tudo bem.
- Ah, machucou? Nossa, que desastrada.
- Mas, claro que não. E quem me dera que um belo par de pernas como esse tropeçasse em mim todos os dias.
Ficou desconcertada. A última coisa que esperava naqueles dias era um elogio. Não conseguiu dizer nada.
- Poderia me dizer qual é seu nome?
- Ah, ahn. Claro.
- E, qual é?
- Ah, desculpa. Cecília.
- Prazer, Gustavo - disse, enquanto apertavam as mãos.
Ela não saberia como se portar diante daquilo. Deixara de perceber outras pessoas por causa dele e até mesmo a evitar e desgostar de cantadas. Repensou e viu que, no fundo, não passava de auto-anulação.
- Então, eu estava aqui lendo alguma coisa, mas a atenção foi cortada e, sabe como é, né. Quer, erm, tomar um café ou algo assim?
- Ah, descul.. - e cortou a palavra antes de terminar. O que estava fazendo? Conheça o rapaz, saia com ele, distraia-se, esqueça-o - ah, claro!
- Que bom, que bom. Tem um barzinho aqui perto muito bom.
- Claro, vamos, sim.
Desceram as escadas e sairam pela rua. Ela não sabia o que estava fazendo, ainda, apenas coninuava a andar. Sentia raiva, vontade de fazer algo que o fizesse reparar nela, perceber que nem tudo era tão garantido como ele imaginava.
Talvez até fosse, e ela sentia ódio pelo amor que não conseguia fazer diminuir. No bar com o recém-conhecido Gustavo, não cortou as indiretas, deu o telefone e não teve peso na consciência. Quis estar em casa e ter alguém que ligasse para ela, mesmo sabendo que iria, imediatamente, negar qualquer convite que permitisse um avanço maior do que uma saída como amigos.
Deixou que ele beijasse sua mão e entrou no apartamento, sorrindo por ainda ser interessante para alguém. Não sentia-se mais feia e esquecida. Deitou, novamente de calcinha, em sua cama e não ouviu quando ele chegou e deitou ao seu lado, sem dizer uma palavra sequer. Virou de costas e sentiu que ele percebeu algo errado.
Sua maior satisfação foi tirar as mãos dele de sua cintura.
- Estou cansada agora. Quero dormir.
quinta-feira, novembro 09, 2006
Assinar:
Postar comentários (Atom)
2 comentários:
muito bom.
Ao mesmo tempo, adoro e odeio o fato de vc ter escrito isso. Adoro, porque ficou lindo, lindo. Muito bom. Odeio porque, bem, vc certamente escreveu isso por um motivo.
ai, gabs, seria ótimo ter você, perto, sabia? Ando precisando.
Amo vc, guria. te cuida
Postar um comentário